6- Exposição Permanente “A tala de Rio de Onor”

A TALA DE RIO DE ONOR

portugalApresentação

Rio de Onor encontra-se a 28 km a Nordeste de Bragança, no terminus de uma estrada que atravessa um extenso planalto e que teve a última metade do seu percurso alcatroada em 1979. Encostada à linha de demarcação fronteiriça que separa Portugal de Espanha, tem junto a si, já do outro lado da raia, uma aldeia com o mesmo nome que dista 14 km de Puebla de Sanabria.
A aldeia foi estudada por Jorge Dias nos anos 1940 e começos de 1950, e seria revisitada cerca de 30 anos depois, num outro estudo que resultou numa nova monografia (ver Sugestões de leitura). Com 36/ 38 vizinhos (fogos) distribuídos ao longo dos cerca de 200 metros das duas margens do rio que atravessa a aldeia, a sua população ronda hoje os 100 habitantes. A extensão e a diversidade das propriedades comunais e um vasto conjunto de aspetos da vida da aldeia são sujeitos a uma gestão coletiva que têm no conselho ou povo o lugar instituído que melhor a caracteriza, tal como a generalidade das aldeias da terra fria transmontana. A parcela mais importante e central no modo de organização da aldeia e do conselho constituído pelos vizinhos, são os coutos ou lameiros, destinados à pastagem do rebanho coletivo das vacas e do próprio touro reprodutor, também pertença da aldeia. O abandono da agricultura tradicional reduziu de tal modo o número de bovinos que no final dos anos de 1990 já não havia boiada, desaparecendo também a rigorosa vigilância e gestão dos coutos feita no âmbito do conselho. Em Rio de Onor os mordomos são escolhidos no primeiro dia do ano, um de cada lado do rio, e têm a tarefa de conduzir toda a ação do conselho numa competência que também se partilha e por vezes se confunde com o exercício local do presidente da Junta de Freguesia.
As talas de que falamos neste núcleo provêm sobretudo desses dois momentos de estudo da aldeia, anos 1940/ 1950 e anos 1970/ 1980.

O conselho e o uso da tala

As talas são varas em geral de choupo, com cerca de um metro de comprimento, onde foram feitos entalhes à navalha, em intervalos iguais, correspondendo cada espaço à casa de um vizinho. As casas sucedem-se na tala pela ordem que ocupam na aldeia, ordem que é seguida num vasto conjunto de tarefas que respeitam à atividade agro-pastoril e infraestruturas da aldeia, contribuindo assim para a fixação dessa mesma ordem. Ela é, numa superfície linear, a figuração topológica de uma aldeia em que as casas se sucedem num círculo ordenado sempre no mesmo sentido e ativado para a multiplicação das tarefas partilhadas entre os vizinhos. A inscrição e a leitura da tala são ainda facilitadas pelo entalhe mais profundo que corresponde ao rio que separa as duas metades da aldeia. As anotações são aí feitas pelo sistema de golpes cujo tamanho, profundidade e posição estão codificados num sistema simples de escrita de todos conhecido. Existiram tantas talas, quantos os assuntos que exigiam uma escrituração: tala da roçada, tala das multas, tala do gado, tala da cabrada, tala da eleição dos mordomos, etc. As duas primeiras deixaram de ser usadas com o abandono das roçadas coletivas (década de 1940) e da aplicação das multas em vinho (na década seguinte). As talas das ovelhas e das cabras mantiveram-se até aos anos de 1960, pois ainda havia pastores contratados pelo conselho.

Tala da Roçada

As roçadas eram cultivos no baldio, feitos depois de cortado o mato durante o Inverno e queimado depois de seco no fim do Verão. Os mordomos dirigiam todos os trabalhos e estabeleciam o valor a pagar por ausências não justificadas às operações de: corte e queima do mato, lavra, sementeira, ceifa, transporte, debulha e divisão do cereal colhido. As multas, geralmente em vinho, eram anotadas na tala da roçada. Estas informações são do Abade de Baçal que no início do século XX delas faz uma detalhada descrição e correspondem às que Jorge Dias obteve em meados do século.

Ficção de si mesma

A curiosidade que despertou nas aldeias onde foi encontrada e, muito em particular, em Rio de Onor, pela sua frequente utilização nos anos em que Jorge Dias desenvolveu o seu estudo, influiu no modo como foi percebida e reapropriada localmente enquanto objeto representativo da aldeia. Daí a tala vir a ser feita, sobretudo a partir de finais dos anos de 1960, começos de 1970, com a única finalidade de ser oferecida: a ficção de si mesma, ou seja, a exemplificação do objeto que se reforça enquanto símbolo.

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A Leitura da Tala

O Abade de Baçal foi quem primeiro descreveu as talas de Rio de Onor admitindo ver nelas sinais de uma remota origem: “é muito para notar a sua leitura que se faz sempre da direita para a esquerda, como nas línguas orientais, o que lhe dá uma génese arcaica que convém não esquecer”. Mas esta leitura da direita para a esquerda decorre dos constrangimentos técnicos da escrita e do tipo de suporte em que é inscrita. A mão que escreve – a mão direita – segura a navalha com que faz os entalhes na vara agarrada com a mão esquerda de encontro ao peito e em posição quase horizontal. Com a ponta do polegar esquerdo, o mordomo vai percorrendo, ao longo da tala, os sucessivos espaços que correspondem às casas, na ordem por que estas se sucedem na aldeia, para assim poder localizar cada uma delas e fazer os entalhes nos locais devidos. Faz isto começando no primeiro espaço, na extremidade mais grossa da vara, enquanto os que imediatamente se seguem (à esquerda) se mantêm encobertos pelo polegar e a mão que a segura. Este processo de escrita da direita para a esquerda, de maneira a manter visível a superfície e o que nela vai sendo gravado, é indissociável de uma leitura também da direita para a esquerda pelos mesmos motivos.

imagem-1-casas_conselho_1976imagem-2-tala_1976_foto_47698Eleições de 1976

Em 1976 o conselho tem mais 4 membros em relação ao ano anterior. Trata-se de emigrantes de regresso à aldeia, depois de uma permanência de alguns anos em França ou na Alemanha. No dia 1 de Janeiro de 1976, um dos dois mordomos do ano anterior traz consigo a tala para o conselho onde se vai proceder à eleição dos mordomos.
É uma vara entalhada demarcando os espaços que correspondem a cada casa. Em relação à margem direita, ou seja, entre a extremidade mais grossa e o corte mais profundo que representa o rio, está marcado o número exato das casas; já na parte correspondente à margem esquerda o mordomo continuou os entalhes, como que distraído e entretido a fazê-los, para além do número de casas efetivamente existentes. Fez depois uma marca lateral com a navalha para indicar para si mesmo o fim da contagem das casas.
São membros do conselho 12 casas na margem direita e 11 na margem esquerda. Os vizinhos mais votados correspondem a 2 dos emigrantes recentemente regressados, fator que influiu no modo como a escolha divergiu da prática tradicional de eleger um mordomo de cada margem do rio.
A tala revela por vezes pequenos enganos que o mordomo rapidamente corrige, como a marcação de um voto que fez na casa 21 e que logo apagou, socorrendo-se igualmente da navalha.

imagem_1_casas_conselho_1978_Customimagem_2_foto_tala_1978_foto_47697_CustomEleições de 1978

A tala das eleições dos mordomos de 1978 revela uma marcação descuidada do número de casas representadas na margem direita e da marcação do rio que coincide sempre com o entalhe que delimita a ultima casa de uma margem e a primeira da outra, apesar de se tratar sempre de um entalhe que contorna o maior perímetro da tala.
No ano de 1978, eram 12 os vizinhos da margem direita (e não 13, como pode parecer), e na margem esquerda, são 11 os membros do conselho da aldeia. O erro referido não afeta o registo e a sua leitura, pois naquela margem direita os votos encontram-se distribuídos até à 7.ª casa.

Imagem_1_casas_conselho_1980_CustomImagem_2_foto_tala_1980_foto_47699_CustomEleições de 1980

Em 1980 as casas distribuem-se em igual número pelas duas margens da aldeia, num total de 22 vizinhos do conselho. Um dos membros mais jovens (rapaz solteiro a representar a casa do seu pai como homem do conselho) sugeriu nesta eleição que se passasse a usar o sistema do voto secreto em papel. A aprendizagem do formalismo das eleições que no país se sucediam pareceu ser o quadro de referência que suportava essa intenção. Mas a tala continuou a ser o modo de escrita e suporte do registo dos votos.

Imagem_1_casas_conselho_1982_CustomImagem_2_foto_tala_1982_foto_47700_CustomEleições de 1982

Em 1982 o conselho para a eleição dos mordomos realizou-se na antiga escola recentemente transformada em Casa do Povo. O conselho da aldeia tem 20 vizinhos igualmente distribuídos pelas duas margens do rio. A diminuição dos seus membros ir-se-á acentuar progressivamente nos anos seguintes. Para o local foram levados a canada e o copo do conselho, a tala previamente entalhada por um dos mordomos e o garrafão de vinho que irá ser bebido.
Seguindo a gestualidade do processo da gravação, pode por exemplo ver-se como no espaço correspondente à terceira casa da margem esquerda (casa n.º 13) o número de votos obrigou o mordomo a rodar a tala e a inscrever o último num plano inferior.

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